Excesso




Poesia para brilhar sobre o caos
Tanussi Cardoso

Dona de uma linguagem moderna, sem ser modernosa, e atual, sem estar presa a modismos vanguardeiros, tão em voga – onde a busca de um pseudo-hermetismo torna a poesia cada vez mais perto do Olimpo de uma elite privilegiada, Rosane Carneiro, neste seu primeiro livro, consegue equilibrar forma e conteúdo, sem arroubos formais ou falsa erudição europeia (prenhe de elocubrações híbridas, vazias, de pura retórica ininteligível). Quase intimistas, quase sem excentricidades, seus poemas são para serem lidos em silêncio. Assim, o leitor, calmamente, vai descobrindo pontos secretos, sinais que podem passar despercebidos a olhos rápidos. A poesia de Rosane Carneiro é humana, comunicativa, sem radicalismos. Lê-se com prazer.
Excesso, a obra de estreia, trata, na quase totalidade, do “amor”, em suas várias vertentes. Tema árido para um autor iniciante. Rosane Carneiro, porém, consegue driblar o perigo. Enganosa em sua forma límpida, a poesia flui simples, e, através dessa aparente, mas difícil simplicidade, vislumbra-se um nível excelente de elaboração poética. Versos agudos de uma poeta que possui poema pleno e vigoroso, sem cair no risco do discurso banal, aliando sensibilidade e espontaneidade à racionalidade com que a forma induz ao poema.
Em seus versos, dois elementos essenciais à poesia são relevantes: a combinação na cadência de sons e a harmonia perfeita na escolha da palavra poética – sonoridade, ritmo, silêncio. A musicalidade invadindo os versos.
O poema de Rosane Carneiro não é comportado, antes inconformado, e, apesar das possíveis influências (Drummond, Vinicius, Bandeira, Pessoa...), a poeta ignora as receitas, não copia bulas, colocando-se à disposição tão-somente da emoção, que tentar controlar através de invenção poética própria, buscando encontrar o essencial de seu ritmo, e a melodia certa de sua expressão interior. Como, por exemplo, neste belíssimo poema de acento cabralino: “A pedra é/ como o humano/ desaprendeu a ser” (Humanidade).

A poeta afirma fazer uma poesia “feminina”, sem pejo do que possa essa palavra, hoje em dia, significar. À maneira, talvez, de Adélia Prado: “Poesia feminina/ Encantada/ Iludida de torpor/... Cheia de estrelas” (Ao meio). É romântica sim, por que não? Estrelas, alma, saudade, eternidade, breu da noite, passarinho, fada, flor... Mas que não se enganemos desatentos: sua poesia vem “movida a trator”. Esse, talvez, seja o poema-chave para se compreender a lírica de Rosane Carneiro. Quando pensamos que sua poesia pode cair no marasmo de um lirismo pobre e ralo, a poeta nos surpreende com seus versos, assustando-nos com soluções surpreendentes: “Mago/ corte-me em três/ retire cinco cartas/ que a melhor está sob a manga/ Findo o jogo/ cá estou/ Tua,/ ...Imperatriz de novo” (Tarot).
Rosane Carneiro persegue o que todo grande poeta, igualmente, persegue, ou seja, o artifício da condensação, onde, com poucas palavras, iluminam-se centenas de significados.
É, de fato, uma poesia delicada, bela. Um corte-lâmina nos dias de hoje. Há, no poemas, tanto despojamento, tanta entrega, que o ato de se expor, quase pudicamente, já é digno de aplausos.

É nua a sua escrita. Livre de censura. Desabrida. Aliás, é no poema e na palavra que a poeta se realiza, sente prazer; um doce prazer e a liberdade plena: “O nosso embate madrugada adentro/ é feito de silêncios rudes e rugidos mansos/ descontrole e certo pânico/ Mas é só nosso/ Difícil, angustiante/ Parto puro/ Sexo doce/... Eu e a palavra (Encontro). E, desse parto, nasce o poema, em forma de liberdade.

O caminho está aberto. Mas, a sorte lançada nãos e encontra nos tarôs ou nos ventos divinos. Rosane Carneiro sabe que, na leitura dos grandes poetas, na sabedoria do aprendizado, no trabalho constante, na desarrogância do orgulho, é onde habita o segredo. O livro de estreia, Excesso, é repleto de belas imagens, de soluções poéticas inteligentes e altamente pessoais. E, por possuir soluções poéticas altamente pessoais, não corre o risco de viver à sombra, de não alcançar seu próprio voo. A poesia de Rosane Carneiro é necessária – veio para brilhar sobre o caos.
 
(Prefácio)



Rosane Carneiro: o amor para além do 'amar'
                                                            Cláudia Castanheira

Embora em todas essas escritoras a chama do amor, em variada intensidade, ilumine sentimentos que motivam e plasmam a experiência lírica, parece ser na lírica de Rosane Carneiro que a poética dominada pelo encanto e pela afetividade mais sobressai. É o que revela a leitura do inominado poema abaixo transcrito (E, p. 26):

O amor abre todas as portas –/ as de dentro, de fora, de sempre, de tudo/ O amor é tão
e tanto traz que não comporta/ Só é/ Queria ver o amor dentro de todo mundo/ Que o amor fosse tudo/ Nem amor fosse:/ apenas a sensação/ da luz que sequer cabe/ na palavra

Tratado sob uma conotação mágica, o amor assume para o eu lírico dimensão praticamente ilimitada. Além de ser “tão” e “tanto”, tal sentimento acaba por transmutar-se em “sensação da luz” inominada, porque maior do que a capacidade nomeadora da palavra. Trata-se, no todo, de uma poética pontuada pela exigência/emergência de um sujeito poético que busca na autoconfissão um vazadouro para os “excessos” do seu sentir. Nota-se também que grande parte dos poemas superexploram os signos de uma feminilidade arquetípica, fixando-se em imagens tradicionalmente remetidas ao horizonte cultural da mulher. E, sob este aspecto, torna-se oportuno citar o trabalho de Guy Michaud, que, ao classificar e descrever os caracteres humanos mais comuns, visando a um estudo mais sistemático da criação poética, reconheceu que o “tipo feminino” é aquele “caracterizado fundamentalmente pelo instinto sexual, que ora se apresenta sob o aspecto da sedução, ora sob o aspecto do instinto maternal. Expansivo, otimista, amando o encanto da vida, [esse tipo] e dominado [predominantemente, portanto] pela afetividade”.[1]

A nítida tipificação “feminina” do livro de Rosane Carneiro se revela abertamente em “Ao meio”, poema que efine a atmosfera dominante na maioria dos textos da autora (E, p. 27):

Poesia feminina/ Encantada/ Iludida de torpor/ Cheia de estrelas/ Um rastro do meu relicário/ Suaves.../ mas movidas a trator

Significativamente introduzido pela conjunção adversativa, este último verso sugere ou tenta sugerir que não há relação necessária entre a sensibilidade feminina e a fragilidade; ou, ainda, que a mulher pode ocultar uma grande força disfarçada sob uma aparência frágil. Tal força se apresenta, por excelência, no mito da maternidade, a qual, citada diretamente ou através de seus emblemas, é referência comum, sendo o seio/peito materno tomado como modelo-nutriz que sustenta as relações amorosas, como em “Brinquedo” (E, p. 20):

Estou/ de amor até o seio/ Mas só/ espuma e incendeia/ a peça do teu desejo/ Brinquedo/
Sou eu/ a mãe dos teus medos?

E, no poema “Peito”, fica demonstrado, já a partir do próprio título que, sob uma interação complexa, o circuito dar-e-receber é parte de um único processo, justamente o processo que tende a definir (em condições ideais) o relacionamento mãe & filho (E, p. 11):

Dou de peito/ ao meu amor/ Para que ele leve de mim/ toda a angústia/ Que ele me sugue/ brando, certeiro/ Tragando do meu corpo/ minha alma ianque/ matreira/ Estou mãe/ do meu amor/ porque ele merece/ beber de mim/ a vida inteira

Em geral, as referências à maternidade apontam a valorização dessa exclusiva experiência feminina para uma compreensão mais profunda do modo como o eu lírico se relaciona com o amor, de forma mais ampla, já que, sob os moldes de nossa cultura, o amor materno, em sua irrestrita incondicionalidade, é a mais perfeita tradução do amor ideal. O que está em jogo, nesse processo, é uma interioridade ávida por denunciar e ratificar o poder do amor, não necessariamente dirigido para um objeto em especial – embora seja para um objeto especial, exterior, que o amor mais se dirija. Tal tendência talvez se explique pelo pensamento de Simmel[2], para quem “o amor é sempre uma dinâmica que se gera, por assim dizer, a partir de uma autossuficiência interna, sem dúvida trazida, por seu objeto exterior, do estado latente ao estado atual, mas que não pode, propriamente falando, ser provocada por ele”.

Com isso, o autor quer dizer que o amor, como “interioridade absoluta”, é uma orientação que a vida toma por si mesma, podendo ser atualizado a partir de um objeto, mas que dele não depende para existir. Por esse viés teórico entende-se, na poesia de Rosane Carneiro, a concomitância do amor como realidade última e como busca projetada sobre o outro, o que envolve, mais diretamente, a relação a dois, ou sujeito-amante/objeto-amado. Aquele (raro) amor desembaraçado de expectativas românticas é, então, colocado em tensão direta com o seu oposto mais imediato: a inquietude própria das paixões efusivas. Sobre aspecto, vale citar a proposta teórica de Bataille[3], que, partindo do pressuposto de que todos somos seres originalmente descontínuos, considera a paixão amorosa a tentativa de recuperar a continuidade perdida. É por este motivo que, para o apaixonado, só o ser amado parece poder “realizar o que nossos limites não permitem, a plena fusão de dois seres, a continuidade de dois seres descontínuos”. E, inevitavelmente, a entrega passional ao objeto do amor traz como contraponto a vivência do sofrimento decorrente da constatação de um abismo/ausência do outro, que só pode ser sanado precária e temporariamente. São ainda de Bataille as seguintes considerações:

Nunca devemos esquecer que, apesar das promessas de felicidade que a acompanham [a paixão], ela introduz, inicialmente, a confusão e a desordem. A paixão venturosa acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade em questão, antes de ser uma felicidade cujo gozo é possível, é tão grande que é comparável ao seu oposto, o sofrimento. Uma felicidade tranquila, onde o sentimento de segurança predomina, só tem sentido se encontrar a calma para o longo sofrimento que a precedeu. Pois há para os amantes mais chance de não poder se reencontrar longamente do que gozar de uma contemplação alucinada da continuidade que os une. (...) As chances de sofrer são tão grandes que só o sofrimento revela a inteira significação do ser amado. (...) A paixão nos engaja assim no sofrimento, uma vez que ela é no fundo a procura de um impossível e, superficialmente, sempre a busca de um acordo dependente de condições aleatórias.[4]

Tal realidade é exemplarmente representada em “Estilingue”, poema no qual a rejeição e o consequente sentimento de fragilidade emocional são colocados no mesmo nível da morte e da perda da liberdade interior (E, p. 18)

Amar é ser passarinho/ Tô tão menor,/ esquisitinha!/ Lagartixa de flor/ acuada no sol/
Alga do mar/ no meio da onda/ de ressaca/ sem par/ Me feriu a sorte/ Veio você feito a morte/ pedra de corte/ lancinou minha liberdade/ de comigo mesma voar/ Me prende ou me mata:

me soltar/ ferida no asfalto/ é que não dá

A imagem do “passarinho” simboliza tanto a fragilidade emocional do amante rejeitado, quanto a altura, a plenitude e a liberdade perdidas em decorrência da perda do amor. O “estilingue” metaforicamente é a “pedra de corte” que roubou a liberdade da mulher/ave, levando-a a agonizar, ferida de morte, no asfalto/vida, à espera de que o outro, o ser amado, possa resgatá-la do sofrimento resultante da quebra de suas expectativas romântico-sentimentais.
A questão da frustração sentimental retorna em outros momentos do livro, em que se retrata o vazio, ou vazios, que se abrem em decorrência do amor que se perdeu. Mas, apesar dos contratempos e desencontros amorosos, a leitura em conjunto da poesia de Rosane Carneiro revela que, como a Fênix rediviva, o sujeito lírico supera as barreiras das frustrações individuais para, generosa e “religiosamente”, estender-se de modo ilimitado sobre a própria vida: “Porque o poema é uma prece/ Declamar é orar/ Viver é amar/ Poesia é amor/ à vida”. (E, p. 40)


[1] Apud AGUIAR e SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina (1973). p. 157.
[2] Apus COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. 3ª ed. Rio de Janeiro: Rocco (1999).  p. 71.
[3] BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM (1987), p. 19.





(Ensaio publicado em Além do cânone – de Helena Parente Cunha (org.),
pela editora Tempo Brasileiro, em 2004.)

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