21.1.11

Caro,


Desviar merece mérito; pois o mundo tal e qual o necessita. Melhor ainda quando o desviante surge em meio ao estético de pura simetria. A desordem das coisas.
A desordem – também chamada dúvida, desejo, ou mesmo o diabo (embora pense comigo que Deus cria no caos) – é a vida. As paixões habitam o inesperado, e como o que não se planeja é, portanto, engendrado, há paixões por todos os lados.
Simples – lástima não possamos percebê-lo. Apenas olhe-se ao redor, e o que fascina nasce a cada instante, nas minúcias mínimas. O grão de areia e o sorriso da guria; o passarinho e um beco de escadaria; o cheiro do pão; um canto de cigarra; o andar altivo da boemia. Tantas muitas e pequenas pedrarias. Continuasse eu e estaria feita a volta ao mundo, até chegar ao desviante que me enche a mente estes dias: teu mirar oblíquo – a pálpebra imponderável que de mim me desvia.
 
 
 

6.1.11

Contingências


A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar.

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Arte poética II", Poemas escolhidos (Companhia das Letras, 2004)


Estou há dias com este trecho na cabeça. Talvez por ter vindo misturado à urgência de escrever, e ao mesmo tempo com a resistência ao blogue, com a angústia de cura, com a latência de vida - parece inversamente proporcional, tudo, sempre, e eis a origem da tragédia humana: queremos o que não temos, o que nos falta, o que estamos à beira de perder (e viva a literatura). Como forma de finalmente poder começar a escrever aqui busquei inverter o processo, a partir das palavras magníficas da poeta; "isso, jamais perderei a inteireza, esse fundo de lá que é a pedra fundamental da loucura de escrever toda". Não importa aonde você vá desenxurrar a bolha, pensei, nada estará partido em você, porque é visceralmente seu, caramba.

Pensando agora, em mim foi o equivalente àquela cena do 2001, uma odisseia no espaço... (Só que no caso todos aqueles séculos resumem-se a algumas poucas décadas. Quanta terapia, céus, é necessária afinal para eliminarmos em nós o que urbana e contemporaneamente denomina-se autossabotagem?)

Um outro argumento plausível para a resistência é a siamesice, inversa, com as palavras. É uma simbiose, um entranhamento, onde escrever é essenciar-se ininterruptamente. Daí talvez o pensamento - infantil, reconheço - seria o de que escrever virtualmente poderia despedaçar-me: este meu texto não está mais comigo.

Bueno, isto ainda continuará a martelar aqui. Fiquemos com Sophia.


Daqui a um pouco regularizo o fluxo. 



A diferença é a dose


(ou editorial invertido)

Será um processo de cura. Veneno ou remédio, peço socorro às palavras – mais uma vez. Vou me render finalmente à escrita de um blogue porque preciso me defender menos.

O princípio é simples: a alergia é uma defesa do organismo, que crê estar sendo atacado. E, simplificando bastante, tal crença aplicada ao meu organismo em particular leva-me a crises homéricas onde o corpo  simplesmente se fecha não há troca; e respirar é troca. Detalhes sórdidos forneço depois, mas liquido tudo com o silogismo rasteiro de que escrever para mim é viver.

Portanto pretendo escrever, i.e. respirar (e sobreviver) por um período neste... local. Costumo fazê-lo por meio da poesia, mas entrei em pânico quando percebi que ando somente expirando para dentro, ultimamente. É um ar tão sublimado esse da poesia a ponto de não permitir mais misturar-se?...

Não sei o que ocorre, mas desde então tive ganas de furar a bolha, e cuspir todo mínimo sopro, substantivo, resfolego, advérbio, soluço, pronome, (in)(ex)pirado ou não.

Adianto que para a cura ser completa, para uma troca realmente liberta, não pode haver funcionalidade, atravanco, lógica, julgamento, serviço, nada: só o que me acometa de verdade, e que não mereça ficar retido, guardado. Na minha receita entra todo e qualquer texto pedinte por ser processado absorvido e exalado; meus e de outros caminhantes (talvez também hiperalérgicos). Pode ser que tenha a ver com poesia, e desconfio de a senhora rarefeita terminar por invadir e dominar este meu dublê de corpo.

Paciência. Quando ocorrer, talvez eu esteja curada.